Na Rua Coelho da Rocha revisito os locais onde criou rotinas e desenvolveu hábitos dos quais ficaram alguns relatos curiosos. Tornou-se cliente habitual da barbearia do Sr. Manassés, no nº 5C, da tabacaria do Sr. Sá e, na esquina, da leitaria do sr. Trindade, que lhe dava crédito e provia ao estranho pedido de “2, 8 e 6”, a caixa de fósforos, o maço de cigarros e o cálice de aguardente (custavam então 2, 8 e 6 tostões), indo depois encher, com mais uma dose de Águia Real, a garrafinha que o poeta transportava discretamente na pasta de cabedal e que lhe alimentava as noitadas de produção intelectual.
Em 1928 intervém na política. Na sua colaboração com o Interregno (manifesto político do Núcleo de Acção Nacional), o poeta parece defender a ditadura salazarista, porém não passando tudo de um equívoco dado não alinhar com o despotismo e o ultranacionalismo do regime vigente. Mais tarde, a 29 de março de 1935, compõe três textos de sátira ao Estado Novo, um deles dirigido ao seu próprio chefe:
António de Oliveira Salazar. / Três nomes em sequência regular… /António é António. / Oliveira é uma árvore. / Salazar é só apelido. /Até aí está tudo bem. / O que não faz sentido. / É o sentido que isso tudo tem.
Este senhor Salazar / É feito de sal e azar. / Se um dia chove, /A água dissolve / O sal, / E sob o céu / Fica só azar, é natural.
Oh, c’os diabos! / Parece que já choveu…
Só abandonaria esta casa e esta rua em 29 de novembro de 1935, consequência das fortes dores abdominais de que foi acometido dois dias antes (cólica hepática?, pancreatite aguda?) e que motivaram o seu internamento no Hospital de São Luís dos Franceses, situado no Bairro Alto.
Estou no nº 182 da Rua Luz Soriano, frente ao antigo Palácio do Cunhal das Bolas. Foi aqui no quarto 30 que o poeta deu entrada ao final da tarde do dia 29, por insistência do seu cunhado alarmado com o estado de debilidade em que o encontrara no dia anterior.
É talvez o último dia da minha vida. / Saudei o sol, levantando a mão direita, / Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus. / Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.
No hospital foi assistido por Jaime Andrade Neves, seu primo médico, tendo permanecido semiconsciente à medida que o seu estado de saúde se continuava a deteriorar. Pressentindo o destino que vinha ao seu encontro pediu um lápis, pôs no peito a sua inseparável pasta preta, sobre ela um papel, e, em inglês, deixou a sua última frase escrita:
A 30 não se registaram quaisquer melhoras, o torpor que precede o fim já se instalara definitivamente. “Dai-me os óculos”, pediu nessa tarde, na ânsia de ler algumas linhas do livro “Sonetos escolhidos” de Bocage que tinha levado consigo para o hospital, pedido que não foi satisfeito. Foram as últimas palavras que pronunciou. Morreu pelas 20H30, aos 47 anos.
O funeral realizou-se no dia 2 de dezembro, tendo o corpo sido depositado no jazigo da família no Cemitério dos Prazeres e ali permanecido até 16 de outubro de 1985, data em que foi trasladado para o claustro do Mosteiro dos Jerónimos, onde repousa para a eternidade a par de outros grandes nomes da história de Portugal.
No derradeiro troço deste percurso pessoano acompanho, uma última vez, o traçado do eléctrico 28, desta feita no trajecto entre a Calçada do Combro e a Praça de São João Bosco. No cemitério visito a capela onde decorreu o velório e o jazigo (nº 4371, rua 1, direita) onde o corpo permaneceu durante 50 anos. Nos km finais replico a viagem dos restos mortais do poeta até à derradeira morada.